sábado, 24 de novembro de 2012

O DIA EM QUE JOÃO DECIDIU NÃO SE SUICIDAR

O dia em que João não suicidou
Nem por isso lhe deserdou 
o tremor nas mãos
E na cabeça

Nem por isso sua consciência
decidiu lhe dar uma trégua
Nem por isso o dia deixou de amanhecer
como as dores de um parto
Nem por isso o tempo deixou de correr
como em galopada
Nem por isso as empresas
deixaram de rejeitar seu currículo

Nem por isso ele deixou de ficar perplexo
ao ver tantas pessoas tristes dizerem “bom dia”, “tudo bem”
“bom dia”, “tudo bem”
“bom dia, “tudo bem”

A taxa de criminalidade continuou aumentando
e os parlamentares a aumentar seus salários
A iminência de uma Bomba
ameaçando sua cabeça
Continuou a se sentir rejeitado
pelo sexo oposto

Suas asas insistiram em não reconhecer
os comandos de seu dono
Seus amigos continuaram a debandar
para o lado da onça
Sua timidez continuou a escalar o muro
olhando para baixo
Seu medo e seu desânimo continuaram
como um vírus ou um câncer
continuaram como um vírus ou um câncer

Os fios de seu cabelo continuaram a quebrar
como numa procissão frenética
E a embranquecer

Suas dívidas e prestações com Deus, o Homem e o Diabo
continuaram seus juros
A orquestra desafinada de vozes,
na sua cabeça, não se calou
Sua percepção de que Deus o ironizava
nos pequenos e grandes detalhes
nos pequenos

Nem por isso ele deixou de ficar perplexo
ao ver tantas pessoas tristes dizerem “bom dia”, “tudo bem”
“bom dia”, “tudo bem”
“bom dia”, “tudo bem”

Seus olhos continuaram esbugalhados
como um animal prestes ao abate
Todos os seus distúrbios psicossomáticos
Em estado de vigília
Seu desejo de convocar o carrasco,
não para lhe torturar mais como agora,
Mas para pôr logo sua cabeça na guilhotina

Mas esse é o dia em que João não suicidou
E cumprimentado
Ele respondeu “bom dia” e “tudo bem”
“bom dia” e “tudo bem”

“bom dia” e “tudo bem”

2 outubro 2012

NECESSITA-SE URGENTEMENTE DE ESPONTANEIDADE

Necessita-se urgentemente de espontaneidade
Colegas já buscam no Google o sentido de autenticidade
Grupos de centro-esquerda reivindicam nas ruas a espontaneidade
E tornou-se lugar-comum entre os candidatos prometê-la
A classe média, atônita, torce por ela
Enquanto se distrai no intervalo da novela
E pede pizza com sorrisos amarelos
Cogita-se lançar um partido pra apoiar a causa, o PE
Mas faltam assinaturas espontâneas para preencher a cota de sua criação
O governo estuda decretar estado de sítio por ela
Os parlamentares, pressionados, votaram nela para ir ao Congresso
Pode virar lei pela escassez de FLUXO
Médicos já se apressam a criar um diagnóstico:
Espontanótico – para aquele que sofre de falta aguda de espontaneidade
Multidões fazem fila para comprar o novo produto: Espontaneidade
Que nos anúncios da TV prometem trazer ela sem muito esforço
É só agitar e usar
Nunca foi tão alta a procura por psicólogos
Os mais desesperados a procuram na cachaça
Tiveram a idéia de colocar numa espécie de zoológico pessoas espontâneas
Assim os humanos podem se inspirar vendo o comportamento espontâneo
Alguns apocalípticos se apressam em dizer que essa escassez de espontaneidade é sinal da chegada do fim dos tempos
O Museu de História Natural mudou seu nome para Museu de História Espontânea
E exibem vestígios fossilizados de espontaneidade
Já se estuda a possibilidade de nas escolas a Espontaneidade virar uma disciplina
E há quem diga que se Monteiro Lobato estivesse vivo, dando-se conta da crise,
Escreveria parábolas com a moral da espontaneidade em livros infanto-juvenis
Também se estuda estabelecer uma data para ela: o Dia do Orgulho Espontâneo
Fizeram até uma festa para celebrar a causa
Mas tiveram de retirar da entrada o aviso: Entrada Espontânea
Porque alguns acharam mais caro que o dinheiro
O problema maior foi quando pediram aos músicos escolados pra tocar jazz
Não conseguiram improvisar

ESPONTANEIDADE OU MORTE – brada o radical
Caso contrário,
Resta o manual
Mas há tantos manuais que não encontro um
Talvez eu crie minha própria cartilha
Pra descobrir com um osso atravessado no pescoço
Que não funcionam cartilhas
E alguns acusam de exagero:
Forçar atitudes não espontâneas a pagar multa ou condenar a pena alternativa
Ou a passar pelo programa de Reeducação Espontânea
Como se a espontaneidade pudesse se aflorar por ameaça institucional
Os conservadores contam em piada de bar que isso é uma histeria gay ou coisa pior que emo
Dizem ainda que espontaneidade não rima com virilidade
Ridicularizam um manifestante que foi flagrado na rua examinando uma flor
Outro manifestante demonstrou seu apoio de uma forma kamikaze:
Fez uma caminhada inteira sendo espontâneo!
Acabou numa camisa-de-força, indo parar no manicômio
Algumas beatas rotulam a espontaneidade de obcena

Espontaneidade: uma utopia?
Um mal necessário?
No muro da socialite autora de best-sellers sobre etiqueta,
Atualizaram a frase de Nietzsche sobre Deus:
A Espontaneidade está morta

Sendo assim, nesse contexto,
Faço meu próprio manifesto por ela, um escrito “espontâneo”:

Por favor, necessito de um pouco de espontaneidade
Ou eu vou me afogar num copo
Ou ficarei dependente de remédios pra dormir
Ou me engajarei na farmácia
Ou me alistarei no psiquiatra
E do divã me tornei dependente
Hoje preciso de um consultor pra pentear o cabelo
Comprei um ticket pro fluxo
E ele estava vencido
Deu tique nervoso até em minha língua
Quero comprar minha espontaneidade a prestações suaves
Jogo sempre na megassena
Na esperança de que ao ser rico não devo dar satisfação a ninguém
Mas vejo ricos que não são espontâneos
E vejo mendigos que fazem pose de não querer nada
Talvez em outra vida, talvez na aposentadoria
Com muita dedicação e treino
Uma lavagem cerebral talvez me sirva
Ou aquele anúncio de spa para perder o excesso de artificialidade
Há tantos papéis sociais:
Pai, filho, trabalhador, amigo, amante, filósofo de bar
Dizem alguns que falta um papel espontâneo...

Oh Espontaneidade!
Dizem os utópicos que tu estás na verdade a um palmo do nariz
Mas eu te persigo como uma tartaruga
Com uma corda amarrada no casco e a outra ponta com a cenoura à frente do focinho
O certo é que hoje, inalcançável e bela como a lua cheia que sobre minha cabeça paira,
Espontaneidade, de ti somos órfãos, de ti fomos exilados

setembro, outubro de 2012