Em 1963 na Inglaterra usavam o nome High Numbers, referência ao público com que se identificou de imediato, os mods. Não, os mods não são uma piada infame com o absorvente feminino, mas um grupo de jovens da pesada, uma gangue que se vestia de moderno, com terninhos à lapinha, ao estilo Beatles no começo do beatlemania, andavam de motos e guerreavam com a outra gangue da cidade, os rockers, com visual mais roqueiro, de jaquetas de couro e roupas pretas. Ambos piravam em anfetaminas e os mods eram apaixonados pelo blues e soul americanos.
Os High Numbers mudaram logo seu nome para o humorístico e espirituoso The Who, onde sempre algum retardado pergunta “- quem?”, “- Who”, “- quem?”
Faziam um som enérgico e juvenil que ficou mais esporrento com a entrada do baterista lunático Keith Moon, que segunda consta, impressionou os outros integrantes ao dizer que podia provar que podia tocar mais que seu baterista. No seu primeiro teste moeu a bateria e ganhou o posto.
The Who era um amálgama de personalidades bem distintas que sabe-se lá como deram certo. No palco eram um acontecimento. Pete Townshend, o cabeça (e narigudo) que ficava possesso no palco, rodopiava seu braço rápido como hélice e dava pulos acrobáticos com a guitarra. Keith Moon que espancava seu kit de bateria como se turbinado por uma pilha Rayovac. Roger Daltrey, o ex-metalúrgico, vocalista da banda, que encarnava o cavalo das composições de Townshend e costumava girar o microfone pelo fio como se fosse enlaçar alguém da platéia. E pairando zen, enquanto todos enlouqueciam, John Entwistle, o baixista super centrado e quieto em meio ao redemoinho. Esssa formação tocou em quase todos os lendários festivais de música dos anos 60-70, incluindo Monterrey Pop Festival, Woodstock e Ilha de Wight.
Num de seus primeiros shows Pete Towshend, o guitarrista-compositor-letrista da banda, jogando sua guitarra pro alto pra causar um efeito cênico chocou-a contra o teto baixo e contrariado promoveu uma das cenas mais marcantes do rock: irado, despedaçou sua guitarra. Tal ato não passou batido pois daí em diante seriam requisitados a quebrar seus instrumentos ao final dos shows. Não só a guitarra era alvo do possuído Pete Towshend mas a bateria de Keith Moon, com direito a um explosivo acoplado no bumbo. Mas se tais gestos podiam causar uma “big sensation” na platéia, também causaram muitos endividamentos ao longo da década de 60 para a banda, afinal; haja grana pra comprar tantos equipamentos, isso quando não roubavam de lojas.
Em 1965, lançaram seu primeiro disco, Who Sings My Generation, que continha entre suas odes à juventude e letras ligeiramente subervisvas, o clássico absoluto My Generation, em que Pete Towshend teria que responder em inúmeras entrevistas mais velho sobre a seriedade do verso “Hope I die before get old” (Espero morrer antes de ficar velho). A música ainda traz um inesperado solo de baixo de John Entwistle, considerado um dos maiores de sua geração no instrumento, numa época em que o baixo só servia pra acompanhar a cozinha, raramente na linha de frente de uma música.
Em 1966 lançam outro grande disco dessa fase mais ensolarada e despretensiosa, bem-humorada e rock’n’roll, A Quick One. O título é uma alusão à música A Quick One, While He’s Away, uma primeira tentativa de fazer rock mais pretensioso, que se tornaria marca do Who dali em diante, com sua suíte de trechos musicais e duração de 9 minutos. Um prenúncio do que estava por vir. Ainda em 1966 lançam o single Substitute, clássico que sobreviveu à sua geração sendo reverenciada em gravações pelos padrinhos do punk Sex Pistols e Ramones.
Veio 1967, o ano-mor da psicodelia e experimentação no rock e The Who não ficou imune a esses ventos. Lançaram o disco Who Sell Out (algo como Who Se Vendeu) brincando desde a capa com a idéia de uma banda como objeto de consumo e posando vendendo produtos bizarros. O disco foi feito como se fosse uma transmissão de rádio pirata e podem ser ouvidos entre as faixas anúncios de produtos fictícios. Na musicalidade, se sofisticavam, incorporando a psicodelia e sons mais melódicos. Considero esse o melhor disco até então, embora há quem prefira os primeiros trabalhos, mais porrada e diretos, que influenciaram o punk e muito do rock que é feito até hoje, despretensioso.
Tommy e a popularização da ópera-rock
Em 1969, após um ano sem lançar disco, lançam uma obra grandiosa que deixou a todos de queixo caído, principalmente os hippies nerds e sua sede de descobrir a simbologia por trás do disco. Tommy, um disco duplo, se tornou um marco não por ser o primeiro disco de ópera-rock, mas como o primeiro a popularizar o formato. Mas o que é um disco de ópera-rock? Ah, ãhn, podemos dizer que é um disco que conta uma mesma estória por entre suas faixas, um disco amarrado por um conceito ou idéia. Entendeu?! Bem, muita gente deve ter quebrado a cabeça tentando entender a profundidade do disco que conta a estória de um garoto cego-surdo-mudo que por força de uma intuição se torna campeão de pinball (mais uma referência ao mundo pop e também à idéia de iluminação espiritual) e logo é convertido em um guru das massas. Mas não se preocupem com a estória, a música é maravilhosa, e as sessões instrumentais soberbas. Tommy é o disco que catapultou The Who para o primeiro escalão do time do rock na imprensa e público. E muitos aleijados faziam questão de chegar nos camarins do Who para pedir curas milagrosas! Anos depois, o disco ganhou uma versão cinematográfica com participação de astros como Eric Clapton e Elton John. Boa oportunidade aos brasileiros de conferir o que dizem as letras e verem se interpretem algo consistente.
Os anos após Tommy: consolidação e art-rock
The Who era considerado uma lenda ao vivo e não é pra menos a conjugação de personalidades tão ímpares e diferentes no mesmo palco. Aliás, minha primeira grande identificação com a banda foi ao ver o vídeo 30 Years of Maximum Rythm and Blues, uma coletânea de shows desde o começo da carreira.
Na década de 70 seu som foi ficando mais hard ao ponto de ser considerada pelo Guiness a banda que toca mais alto. Um registro que se tornou um marco foi feito de uma apresentação do Who na Universidade de Leeds contando com clássicos de seu repertório e versões apimentadas de clássicos do cancioneiro rock e blues como Young Man Blues, Summertime Blues e Shakin’ All Over. Versões bem expandidas do LP Live At Leeds de 1970 foram lançadas na era do CD.
Ainda desse ano é o lançamento do single The Seeker (O Buscador), que dá título a esse artigo e expressa bem o espírito inquieto do líder Pete Townshend em busca de uma verdade transcendente: “I asked Bob Dylan / I asked the Beatles / I asked Timothy Leary / But he couldn’t help me either” (Eu perguntei a Bob Dylan / Eu perguntei aos Beatles / Eu perguntei a Timothy Leary / Mas ele não pôde me ajudar também), “They call me the Seeker / I’ve been searching low and high / I won’t get to get what I’m after / Till the day I die” (Eles me chamam de o Buscador / Eu tenho procurado pra acima e pra abaixo / Não vou conseguir achar o que eu procuro / Até o dia que eu morrer).
Logo Pete Townshend tinha em mente expandir suas idéias musicais em mais uma ópera-rock, mas dessa vez os outros integrantes, afeitos ao formato rock básico bateram o pé. O que se seguiu foi uma tentativa vã de Pete Townshend de convencê-los e uma crise de exaustão nervosa. Mas do que restou de Lifehouse, como se chamaria o disco, surgiu, sem uma forma conceitual, o disco mais popular e aclamado pela crítica, Who’s Next, em 1971. Nele, Pete Townshend está influenciado pelos ensinamentos do guru indiano Meher Baba e faz um uso inovador para o rock de sintetizadores, como pode ser verificado na música We Won’t Get Fooled Again. Também desse disco há uma pérola de balada, a música mais conhecida deles em terras tupiniquins, Behind Blue Eyes, de que depois foi feita uma versão conhecida de Limp Bizkit, que não conta com a parte mais agressiva e clímax da música. Do disco Who’s Next recomendo a versão que tem faixas bônus, músicas que seriam lançadas no projeto da ópera-rock e que figuram de igual para igual em qualidade no repertório original do disco.
Após esse sucesso, Pete Townshend conseguiu dobrar seus companheiros para fazer mais um disco de ópera-rock. O que seguiu é uma história prodigiosa das aventuras e desventuras de um garoto mod em 1963, sua busca por prazer em anfetaminas, brigas de rua, garotas, motocicletas, os conflitos familiares, o mercado de trabalho e uma crise existencial. Embora não seja tão exuberante musicalmente quanto Tommy, o disco Quadrophenia, de 1973 e suas letras figuram como uma verdadeira obra-prima do Who, que também foi adaptada pro cinema e que recomendo, principalmente pra quem tem dificuldade em traduzir as letras, muito fortes e existencialistas, prenunciando The Wall, outra grande ópera-rock existencial, do Pink Floyd, em alguns anos.
Declínio criativo do Who e morte de Keith Moon
Nos anos seguintes, estabelecidos como grande mito do rock e vivendo dilemas mais adultos, The Who lançou discos menos inspiradores, a começar por Who By Numbers, de 1975, que não chega a ser ruim, mas não faz sombra aos melhores tempos. Em 1978, é lançado Who Are You, disco com influências mais eletrônicas, mais fraco que o anterior.
Mas no mesmo ano uma tragédia acomete o mais alucinado e carismático dos membros do Who: Keith Moon é morto por uma dose acidental de um remédio prescrito pra seu alcoolismo.
A banda segue em frente e lança dois discos mornos no começo dos anos 80, Face Dances (81) e It’s Hard (82). Em seguida a banda anuncia uma lucrativa turnê de despedida mas turnês de despedida e de aniversário sem lançamentos originais acabam manchando um pouco da reputação da banda.
Em 2002 é a vez de John Entwistle ser encontrado morto após overdose de cocaína.
Ainda assim, com apenas 2 membros originais, Pete Townshend e Roger Daltrey, lançam em 2006 o disco Endless Wire com recepção cética da crítica.
O legado do Who
Apesar de o auge criativo do Who ter se dado até 1973, com Quadrophenia, é inegável que a banda se tornou símbolo do que o rock representa de irreverência, ambição criativa e vitalidade. Seu campo de influenciados é vasto passando pelo punk, principalmente pelo grupo The Jam, pelos brasileiros do Ira, e até do grunge do Pearl Jam, além de incontáveis bandas que utilizaram como matéria prima seu legado inicial e mais direto como os sulistas do Cachorro Grande. Seu repertório da fase mais ópera-rock é inimitável. Vida longa ao Who!